Pouco após o entardecer de um dia indistinto, Dona Marinete, já idosa e absorta em recordações que os anos não apagaram, recolheu-se à cama de casal que por décadas compartilhara com o marido falecido. Na solidão do quarto escurecido, onde sombras pareciam mais espessas do que o habitual, adormeceu.
Mas o sono que a tomou não era reparador — era um torpor antigo, profundo, como se viesse de além das estrelas frias ou de sob as raízes esquecidas da Terra. Ela despertou, ou pensou ter despertado, e sentiu algo ao seu lado. Lentamente, virou-se — e ali jazia Seu Torquato.
Sim, ele — o vizinho morto havia mais de vinte anos, cuja presença jamais fora desejada em vida. Agora, imóvel, olhos cerrados, repousava como se jamais houvesse partido. Uma onda de horror sussurrante percorreu-lhe a espinha, não pelo cadáver em si, mas por aquilo que pairava ao redor dele — uma aura de impossibilidade, uma distorção do real.
Com a voz rarefeita por um medo ancestral, ela perguntou:
— O que o senhor está fazendo aqui?
E a resposta veio, sem movimento visível de seus lábios, como se sussurrada por uma entidade através dele:
— Eu só saio daqui... quando outro ocupar este lugar.
O quarto pareceu respirar. Um peso invisível desceu sobre o ambiente. Ela despertou com um grito silencioso na garganta — mas mesmo desperta, algo não estava certo. O lado da cama onde ele estivera parecia afundado, quente, como se algo ali tivesse repousado por horas.
No dia seguinte, sem hesitar, livrou-se da cama. Comprou um colchão de solteiro e passou a dormir num canto do quarto, afastada daquele espaço profano.
Mas nas madrugadas mais escuras, quando o tempo parece parar e o universo se curva sobre si mesmo, Marinete ouve um ranger sutil — como se as tábuas do estrado se lembrassem... como se aquilo que dorme aguardasse.
Aguardasse o próximo.
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