sexta-feira, 2 de maio de 2025

Narrativa em moldura (com narrador não confiável)

 A tal da narrativa em moldura — esse truque literário antigo como os ossos de um monge mumificado — é a artimanha favorita de autores que gostam de fazer o leitor duvidar da própria sanidade. Em vez de simplesmente contar uma história de forma direta, eles preferem entregar tudo por meio de uma carta rabiscada por alguém à beira de um colapso nervoso, um diário que deveria ter sido queimado ou um relatório confidencial que “alguém” deixou cair por engano no porão de uma igreja abandonada. O resultado? Você, leitor incauto, fica se perguntando se aquilo tudo realmente aconteceu... ou se é só o delírio febril de um lunático com acesso demais a papel e tinta.

É claro que dois dos maiores adoradores desse tipo de narrativa são H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe — os príncipes da paranoia e do pavor. Lovecraft, por exemplo, em O Chamado de Cthulhu, nos convida a acompanhar um sujeito que reuniu cartas suspeitas, diários de pessoas desaparecidas e recortes de jornal esotérico para provar que uma entidade cósmica está prestes a devorar nossa insignificante civilização. Tudo isso narrado com a elegância de quem não dorme há dias e talvez esteja ouvindo vozes no escuro. Já em Dagon, outro clássico lovecraftiano, o protagonista — um veterano de guerra com olheiras do tamanho do abismo — escreve uma confissão apavorada sobre uma criatura marinha que encontrou em alto-mar. Spoiler: ninguém acredita nele, nem mesmo ele.

Poe, por sua vez, é o mestre dos narradores que juram de pé junto que estão sãos — enquanto descrevem assassinatos, obsessões e delírios com a empolgação de um vendedor de porta em porta. Em O Coração Delator, temos um homem que mata um velho só porque o olho dele o incomodava (quem nunca?), mas garante que fez tudo com total lucidez. E em Manuscrito Encontrado numa Garrafa, temos exatamente isso: um manuscrito, encontrado numa garrafa, provavelmente por alguém que pensou: “Hmmm, uma mensagem náutica vinda do além? Perfeito para o meu chá da tarde.”

No fim das contas, a narrativa em moldura é uma maneira deliciosamente tortuosa de contar histórias. Ela transforma o leitor em detetive, cúmplice e terapeuta involuntário. Você nunca sabe se está lendo um documento verdadeiro, uma tentativa de acobertar algo muito pior ou simplesmente o diário de bordo de um maluco com boa caligrafia. Uma coisa é certa: se a história começa com “encontrei isso num sótão”... prepare-se para descer junto com ela.




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